Filme mostra as duas faces de Evo Morales
- Em cartaz na Mostra de São Paulo, ‘Um minuto de silêncio’ oferece uma visão crítica do governo do presidente boliviano
- Autor do documentário, o italiano Ferdinando Vicentini Orgnani diz que presidente boliviano traiu a ‘revolução’
RIO — Em 2008, o diretor italiano Ferdinando Vicentini Orgnani foi a Nova York entrevistar o ex-presidente boliviano Gonzalo Sánchez de Lozada, deposto do cargo em 2002, depois de forte reação popular à política de privatização de recursos energéticos do país. Como era para ser um filme “sobre a queda do poder”, Orgnani resolveu visitar a Bolívia e investigar as origens de tamanho ódio contra aquele homem, e tentar entender o que acontecia naquele país, então governado por Evo Morales, o primeiro indígena a chegar ao poder, e o resultado de suas políticas de inclusão social. Encontrou um país dividido, frustrado em sua revolução campesina, tumultuado por protestos e violentos atos de repressão. A temporada de um ano estendeu-se por cinco, que acabaram resultando no documentário “Um minuto de silêncio”, que faz sua estreia na 37º Mostra Internacional de São Paulo (a terceira e última sessão está marcada para esta terça-feira (22), às 15h30, no Espaço Itaú de Cinema).
— Fui investigar a história de Sánchez de Lozada, um criminoso de fama mundial, condenado ao exílio, e acabei descobrindo que o vilão não é tão ruim assim, e o atual herói que o substituiu não é tão bonzinho também. O que vi na Bolívia foi muita contradição — explica o diretor de 50 anos, que veio a São Paulo apresentar as primeiras sessões públicas do filme, e ouviu reações inflamadas de defensores da política do presidente boliviano, que chegaram a gritar “fora, imperialistas!”, sem querer ouvir as argumentações do realizador. — Algumas pessoas da plateia, inclusive argentinos e bolivianos, se recusam a ouvir críticas a Evo Morales, se diziam ofendidas, saíam e entravam da sala de exibição. Perguntavam: “Como você pode defender Lozada?”. O que eu poderia fazer? Mentir, só porque tenho uma ideologia diferente da deles?
Protesto em parque nacional
“Um minuto de silêncio” cobre a situação boliviana desde a saída de Lozada até a repressão, em 2011, de um protesto indígena contra a construção de uma rodovia que cortará o Parque Nacional Isiboro Sécure, o Tipnis, reserva natural criada pela Constituição e que tem como objetivo ampliar o cultivo da folha de coca e escoá-la para fora do país. É uma crônica da gradual transformação do entusiasmo inicial pela revolução de um ex-líder sindical dos cocaleros (agricultores que cultivam a coca, um dos elementos da tradição indígena) que chegou ao poder com 54% do voto popular, mas que hoje dá sinais de que “utilizará de todos os meios, líticos e ilícitos, para permanecer no poder”, segundo palavras de Orgnani. O filme é alimentado por imagens de protestos contra medida impopulares do governo — algumas recebidas com bombas de efeito moral — e depoimentos de civis perseguidos pelo regime de Morales, como o jornalista Juan Carlos Arana: “Temos cerca de 100 líderes de oposição na cadeia hoje. Quando Evo entrou, seis dos nove governadores eram de partidos de oposição; hoje existe apenas um”, enumerou.
A visão do governo Morales está representada na participação de seu vice, Álvaro García Linera. Ele lembra que, antes de Evo (líder do partido Movimento para o Socialismo), havia “uma estrutura patrimonial do poder, que era um assunto de família que, por natureza, gerava governantes e presidentes”, e que Evo havia acabado com a hegemonia branca. Mais adiante, Leopoldo Fernández Ferrera, prefeito de Pando, rebate: “Se você substituir uma minoria por outra minoria cocalera, não está mudando nada, ou seja, ele substituiu uma burguesia industrial e bancária, por uma burguesia cocalera”. O filme também lembra o massacre de outubro de 2003, resultantes dos protestos contra a decisão do governo de vender a produção de gás natural para os Estados Unidos. O diretor e o seu câmera precisaram passar por equipe de TV ou meros turistas para poder registrar a revolta dos indígenas que vivem no Parque Nacional de Tipnis, que acusam a polícia e o exército de ter matado e sumido com manifestantes.
— É certo que Evo Morales criou leis de inclusão, e muitos sindicatos e empresas que queriam o poder puseram dinheiro na campanha dele para a presidência. Mas o que eu vejo é um governo sequestrado por esse desejo de poder. Posso falar de cadeira, porque venho de um país onde vivemos durante 20 anos sob os mandos de Silvio Berlusconi. — O que me parece é que Morales traiu a revolução a que se propunha. Não é uma democracia.
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